‘Tragédia no RS é
responsabilidade também de senadores e deputados que desmontam legislação
ambiental’, diz secretário do Observatório do Clima
Os
governos federal e estadual criaram uma força-tarefa e tentam evitar mais
mortes promovendo evacuações e retirando pessoas de áreas de risco.
Mas a
responsabilidade não é apenas dos governos estaduais e federal, diz Marcio
Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima (OC), mas também do
Congresso — pois as tragédias são resultado da falta de adaptação e de combate
às mudanças climáticas, duas áreas onde os Executivos precisam fazer mais e
onde o Legislativo têm promovido ativamente retrocessos, na opinião dele.
"A
maioria conservadora tem aprovado diversos projetos considerados nocivos para o
meio ambiente. Nunca tivemos um Congresso tão dedicado a desmontar", afirma
o especialista em políticas públicas à frente do Observatório do Clima, rede de
entidades que monitora a questão climática no Brasil.
Além
disso, segundo Astrini, ações que se limitam às respostas de emergência em
situações de crise não são suficientes. Eventos extremos como esse — cada vez
mais comuns por causa das mudanças climáticas —
não podem mais ser tratados como “imprevistos”.
O antes e depois de regiões devastadas
pelas inundações no Rio Grande do Sul
Saques a lojas, ataques a barcos de
resgate: insegurança agrava crise no Rio Grande do Sul
Os gaúchos que perderam tudo pela
segunda vez em seis meses: 'Vou embora, não tenho mais o que fazer aqui'
Fim do
Matérias recomendadas
Embora
nem sempre seja possível prever com precisão a intensidade de um evento
extremo, já sabemos que eles se tornarão mais frequentes — e quais as medidas
que precisam ser tomadas para nos adaptarmos a eles, afirma o especialista.
Modelos
climáticos preveem há décadas um aumento de chuvas extremas no sul da América
do Sul, incluindo toda a bacia do Prata (formada pelos rios Paraná e Uruguai),
lembra Astrini.
“O maior
problema que a gente enfrenta neste momento não é a previsão, é a aceitação”,
afirma Astrini. “A gente precisa aceitar que, infelizmente, esse é o novo
normal. Mas não basta aceitar pacificamente, é preciso aceitar e tomar
atitudes.”
“Todo ano o governo do Rio Grande do Sul fica
extremamente espantado que as chuvas são intensas. O governo do Rio de Janeiro
fica super surpreso quando acontece em Petrópolis.
É uma surpresa em São Sebastião (SP), no
norte de Minas Gerais, em Recife (PE), no sul
da Bahia. Só que acontece que já faz nove anos consecutivos que as médias de temperatura do planeta são as mais quentes já
registradas. Não tem mais surpresa. A gente precisa se preparar para
isso”, afirma Astrini.
Astrini
explica que existem três tipos de resposta possíveis diante da crise climática:
a mitigação das causas, a adaptação em preparação para as consequências e a
redução de danos diante das tragédias.
“Mitigação
é quando você ataca o problema: é quando você interrompe o desmatamento, quando
você tira uma termoelétrica de operação, quando substitui uma fonte poluente
por uma fonte renovável”, afirma o especialista.
“A
adaptação é quando o problema vai acontecer e você começa a adaptar
principalmente as populações mais vulneráveis ao problema. Por exemplo, quando
tira as populações da área de risco, quando dá mais assistência para um pequeno
agricultor lidar com uma seca.”
As ações
também são necessárias contra problemas que não necessariamente são causados
pelo aquecimento global, embora agravados por ele, explica Astrini.
“Adaptação
é também quando você reforça a rede de saúde, porque vão aumentar os casos de
dengue, porque o ciclo de reprodução do mosquito vai ficar mais longo por causa
de chuvas desproporcionais e do calor prolongado.”
Já lidar
com as perdas e reduzir os danos é promover as respostas emergenciais às
tragédias.
“Perdas e
danos é o que se faz normalmente: desbarrancou, você vai procurar
sobreviventes, vai construir casas”, diz Astrini. O problema, na visão do
especialista, é que as ações tomadas por autoridades federais, estaduais e
municípais tendem a se concentrar apenas nesse terceiro estágio de resposta.
“O
pessoal só age quando já está no nível da desgraça”, diz Astrini.
“O
dinheiro investido na primeira camada vale muito mais, porque ele evita a
adaptação e evita o desastre.”
Ações que
estão sendo tomadas tanto pelo governo federal quanto pelo governo estadual e
pelos municípios no caso das chuvas no Rio Grande do Sul — alertas da Defesa
Civil, evacuação de pessoas de áreas de emergência, restabelecimento de
serviços etc — se encaixam no terceiro tipo.
Após a
região ser atingida por um ciclone em setembro do ano passado, o Ministério da
Integração e do Desenvolvimento Regional repassou R$ 82 milhões para o governo
do Estado e outros R$ 243 milhões aos municípios gaúchos para lidar com a
crise. Segundo reportagem da CNN Brasil, a maior parte do dinheiro foi usada em
ações emergenciais, como compra de mantimentos e desobstrução de estradas.
“A gente
pode ter a Defesa Civil 30 vezes maior no Rio Grande do Sul ou em qualquer
outro Estado. Vai continuar morrendo gente, porque a Defesa Civil vai conseguir
salvar a vida de alguém próximo, mas não de todos. Quem salva mais vidas é o
planejamento, e no caso dos municípios, o planejamento urbano”, afirma o líder
do Observatório do Clima.
Embora o
aquecimento global seja um problema em escala mundial, ações de mitigação não
são responsabilidade apenas de entidades internacionais e governos nacionais.
Elas podem — e precisam — ser alvo também dos governos locais, diz Astrini.
“A
mitigação é uma agenda de responsabilidade, não de ganho político. Vou pegar um exemplo aqui no Cerrado, que bateu o recorde
de desmatamento nesse último período: mais de 60% de aumento de agosto do ano
passado para cá. E quem dá as autorizações de desmatamento são os governos
estaduais”, diz ele.
“E há
vários outros exemplos, como legislações de licenciamento ambiental mais
frouxas nos Estados, a responsabilidade com o saneamento básico, com a
transição energética.”
O governo
do Rio Grande do Sul não respondeu inicialmente ao pedido de informações sobre
ações de mitigação e adaptação da BBC News Brasil. O governador Eduardo Leite
(PSDB) tem dado atualizações diárias sobre as medidas emergenciais tomadas no
Estado, que incluem alertas e remoção das pessoas das áreas de risco.
Após a
publicação desta reportagem, a Secretaria do Meio Ambiente do Estado enviou
nota em que "reforça a necessidade de adaptação para garantir a
sobrevivência na Terra" e afirma que as ações de mitigação, adaptação e
resiliência são parte do programa ProClima2050, lançado em 2023.
O
programa, diz a pasta, criou o Gabinete de Crise Climática, "que tem como
principal função conectar as secretarias de Estado, instituições e
pesquisadores no monitoramento e implementação de ações práticas de resposta à
crise do clima".
Segundo a
secretaria, entre as medidas em andamento estão "a contratação de serviço
de radar meteorológico pela Defesa Civil; melhorias na Sala de Situação,
responsável pelo monitoramento das chuvas e dos níveis dos rios; e a
implementação do roadmap climático dos municípios, que mapeará as ações
relacionadas ao clima em esfera municipal".
‘Deputados e
senadores também são responsáveis’
Astrini
diz ainda que é preciso lembrar da responsabilidade do Congresso em relação à
situação climática que leva à tragédias como a sofrida pelo RS neste momento.
"Deputados
trabalham dia e noite para destruir a legislação ambiental do Brasil com
afinco. Neste momento estão querendo acabar com a Lei de Licenciamento
Ambiental, querem acabar com a reserva legal na Amazônia, querem acabar com as
reservas indígenas”, diz Astrini.
Ele se
refere a um um projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental,
permitindo que Estados e Municípios determinem os projetos que precisam ou não
fazer uma análise de impacto, entre outras medidas.
Os
defensores do PL argumentam que ele “diminuirá a burocracia” e por isso
facilitaria o desenvolvimento econômico.
Mas
Astrini diz que o projeto não só não resolve o problema da burocracia como pode
comprometer metas de desenvolvimento sustentável.
“A gente
nunca teve um Congresso tão agressivo nesse esforço para desmontar a legislação
ambiental no Brasil”, afirma.
Deputados
e senadores contrários a pautas importantes para ambientalistas argumentam que
a legislação ambiental atrapalha o desenvolvimento econômico e, em alguns
casos, negam dados científicos sobre o aquecimento global ou sobre desmatamento
no Brasil.
“Tem dois
momentos em que o Congresso ajuda o Brasil na área ambiental: no recesso do
meio do ano e no recesso do final”, diz Astrini.
Para
Astrini, o governo federal vem falhando na disputa com os deputados e senadores
pelas pautas ambientais, embora tenha um bom projeto para a área.
Ele cita,
por exemplo, o fato de a bancada governista ter sido liberada para votar em
qualquer sentido (em vez de receber a orientação para votar contra) o marco
temporal para as terras indígenas.
“A gente
nunca teve um Ministério do Meio Ambiente com tanto apoio no governo. É a primeira
vez que um presidente fala em desmatamento zero e tolerância zero para
desmatadores. Você tem um ministro da Economia que faz conversas sobre o meio
ambiente, um Ministério dos Povos Indígenas... Mas mesmo assim as coisas não
estão andando como deveriam”, afirma.
Além na
tragédia no Sul, há outras notícias negativas na área. O Norte registra número
recorde de queimadas de janeiro a maio deste enquanto a greve de servidores dos
dois principais órgãos de fiscalização ambiental do país —Ibama e ICMBio— já
dura mais de 100 dias.
Para o
especialista, não se trata apenas de uma questão de orçamento mais robusto para
ministérios da área —que também é importante — mas da capacidade de integrar
essa visão em todos os setores.
“Quem
causa o problema de emissões do Brasil? São os atores no setor do Ministério da
Agricultura. E no Ministério das Minas e Energia. São esses ministérios que têm
que ter programas e investimentos para diminuir as emissões de seus setores”,
afirma Astrini. “O Ministério do Ambiente pode multar uma área que já foi
desmatada, mas para as ações de mitigação você precisa da ação de todos os
agentes.”
A BBC
procurou o governo federal para falar sobre o assunto, mas não obteve resposta
até a publicação desta reportagem.
O governo,
que apesar de não ter maioria no Congresso conseguiu aprovar agendas suas como
o novo arcabouço fiscal, não tem “comprado a briga” nas pautas ambientais,
opina Astrini.
No caso
do marco temporal para as terras indígenas, o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva até tentou barrar a aprovação da lei que limita a demarcação, mas seu
veto foi derrubado pelo Congresso.
A tese do
marco temporal é de que apenas áreas ocupadas por indígenas em outubro de 1988,
momento em que a Constituição Federal foi promulgada, poderiam ser demarcadas.
Movimentos
indígenas questionam a tese porque havia terras que, naquele momento, não eram
ocupadas porque seus habitantes originários haviam sido expulsos por invasores.
Já os ruralistas alegam que não estabelecer um marco temporal criava
insegurança jurídica.
Além de
um direito dos povos originários, a demarcação de terras indígenas é
considerada por ambientalistas e pesquisadores uma das principais formas de
preservação da mata nativa brasileira — hoje as reservas impedem o desmatamento
de diversas áreas cujo entorno foi devastado.
Astrini
também critica o fato de pautas ambientais terem entrado no cabo de guerra entre o Supremo e o Legislativo,
virando parte de uma disputa de poder mais do que uma discussão sobre políticas
públicas.
O Senado
e Câmara têm entrado em rota de colisão com o STF em diversos temas, em uma
disputa sobre os limites de cada poder.
A questão
do marco temporal, inclusive, só teve a sua votação acelerada como resposta da
bancada ruralista a uma decisão do STF de 2023.
Na época,
a Corte rejeitou a tese do marco, que era baseada em uma situação jurídica
ambígua. Logo em seguida o Congresso aprovou uma nova legislação determinando a
existência de um marco temporal.
“Em
algumas áreas, como essa do marco temporal, o Congresso tem usado a questão
para atacar os indígenas e o Supremo.”
Além das
decisões recentes tomadas pela maioria conservadora do Congresso e de projetos
em tramitação, Astrini critica a postura pública de deputados e senadores em
relação a temas ambientais.
“São os
homens privilegiados, com espaço, que falam com seus eleitores e formam opinião
pública. Eles não cansam de repetir que essa coisa de meio ambiente, de regra
ambiental, é uma besteira”, diz Astrini. “Mas aí as consequências chegam e a
responsabilidade é de quem?”
Para o
secretário-executico do OC, esses parlamentares "incentivam quem quer
desrespeitar a leis ambientais e prejudicam quem quer fazer certo”. “Então eles
têm enorme responsabilidade por situações como essa (no Rio Grande do Sul) e
têm que ser cobrados por isso.”